Testes sorológicos - considerações para a correta interpretação

Por: Dr. Wagner Maricondi

Os testes sorológicos foram desenvolvidos a partir de reações entre um antígeno e um anticorpo. Antígenos são moléculas complexas que em sua maioria contém proteínas, onde apenas as partes mais expostas são capazes de estimular a produção de anticorpos. Assim, os anticorpos se dirigem apenas contra essas partes, denominadas determinantes antigênicos ou epítopos. Isto permite, algumas vezes, que haja imunidade cruzada, quando a reação imune se dirige ao mesmo tempo contra duas moléculas que, embora diferentes, apresentam epítopos iguais ou semelhantes. Os anticorpos são proteínas produzidas por uma célula do sangue chamada de plasmócito quando o sistema imunológico entra em contato com um antígeno, que pode ser um vírus, protozoário, fungo, bactéria, etc., levando a produção de anticorpos específicos contra ele.

Os conjuntos diagnósticos (Kits) utilizados para caracterizar a presença desses anticorpos específicos contêm reagentes com epítopos antigênicos do agente que se deseja pesquisar, os quais permitem a ligação de “somente” anticorpos específicos que possam estar presentes no sangue de um determinado indivíduo. Os epítopos antigênicos presentes nesses conjuntos variam de acordo com o método utilizado e com a procedência do kit.

Portanto, testes sorológicos são procedimentos utilizados com o objetivo de detectar anticorpos e, eventualmente, componentes antigênicos, para várias finalidades. A pesquisa de anticorpos é utilizada para tentar elucidar processos patológicos com sintomas e sinais clínicos confundíveis, contribuir na diferenciação da fase da doença através da pesquisa de diferentes classes de anticorpos, caracterizar a presença de doença congênita, selecionar doadores de sangue, avaliar o prognóstico da doença, avaliar eficácia da terapêutica, avaliar imunidade, etc. A pesquisa de antígenos é utilizado como critério de cura de algumas doenças, na definição da etiologia da doença, na seleção de doadores de sangue, em inquéritos epidemiológicos.

Pelo exposto, fica claro que os testes sorológicos desempenham papel fundamental na patologia clínica como auxiliares no diagnóstico de uma suspeita clínica principal. Deve-se lembrar, entretanto, que os resultados obtidos podem variar em função de uma série de fatores relacionados com a resposta imune do hospedeiro e com as variações antigênicas do patógeno. Esses fatores podem levar a falsos resultados positivos pela possibilidade de reações cruzadas contra determinantes antigênicos comuns presentes nos parasitas, contra antígenos ubiquitários (presentes em vários locais do meio ambiente) ou devido a uma resposta imunológica exacerbada do hospedeiro, ou a falsos resultados negativos pela ausência de resposta imunológica contra epítopos dos parasitas.

É claro que todos os ramos da ciência médica caminham na busca incessante de um teste ou um processo de referência que possa definir a presença ou ausência de doença no paciente, ou seja, o “TESTE PADRÃO OURO”. Porém os fatores já relacionados e outros que abordaremos a seguir, como os parâmetros sorológicos, devem ser rigorosamente analisados para que a definição do processo infeccioso seja a mais próxima do verdadeiro estado clínico do paciente.

O conhecimento dos parâmetros sorológicos é fundamental na interpretação e valorização de um teste sorológico. Assim, as características e limitações dos testes sorológicos são determinadas pelos seguintes parâmetros:

  • Sensibilidade: há dois conceitos diferentes de sensibilidade. A sensibilidade técnica que é a menor quantidade que o teste consegue detectar e a sensibilidade clínica que corresponde à porcentagem de pacientes doentes com teste positivo detectados em população sabidamente infectada. É o chamado índice de positividade.
  • Especificidade: é definida pela porcentagem de indivíduos “normais” com teste negativo em população sabidamente não infectada. Entende-se como indivíduo normal aquele não portador de afecção para a qual o diagnóstico do teste é destinado. A especificidade do teste pode ser influenciada por inúmeros fatores que levam a falsos resultados positivos. O teste de enzimaimunoensaio (ELISA) para detectar a presença de anticorpos contra o vírus HIV, por exemplo, pode apresentar resultados falsos positivos, em alguns casos, pela interferência de alguns fatores, tais como portadores de artrite reumatóide, doenças autoimunes, infecção viral aguda, doença imunológica da tireóide, etc. Indivíduos polinfectados por parasitas intestinais, muito comum em nosso meio, apresentam um somatório de componentes antigênicos que reagem cruzadamente com inúmeros antígenos-alvo dos kits diagnósticos.
  • Prevalência: é definida como a porcentagem de indivíduos infectados em uma população.

Quando se conhece a prevalência da doença, a sensibilidade e a especificidade do teste que está sendo utilizado se pode calcular a probabilidade de ocorrência ou não da doença.

  • Valor Preditivo Positivo (VPP): refere-se à probabilidade de doença se o resultado do teste é positivo. É obtido pela seguinte fórmula:

VPP= Positivos Verdadeiros ÷ (Positivos Verdadeiros + Positivos Falsos)

  •  Valor Preditivo Negativo (VPN): refere-se à probabilidade de não ocorrência de doença se o resultado do teste é negativo. Obtido pela seguinte fórmula:

VPN = Negativos Verdadeiros ÷ (Negativos Falsos + Negativos Verdadeiros)

Exemplificando, se um teste tem 95% de sensibilidade e 95% de especificidade para uma prevalência de doença de 1% e 20% em uma amostragem de 2.000 indivíduos, após a aplicação de alguns cálculos matemáticos, teríamos:

Para prevalência de 1%: Valor Preditivo Positivo = 16% e Valor Preditivo Negativo = 99,9%, ou seja, de cada 100 testes positivos teríamos somente 16% de verdadeiros doentes e 84% de falso positivo; para cada 100 testes negativos teríamos 99,9% de verdadeiros negativos e somente 0,1% de falso negativo.

Para prevalência de 20%: Valor Preditivo Positivo = 82% e Valor Preditivo Negativo = 98%, ou seja, para cada 100 testes positivos teríamos 82% de verdadeiros doentes e 18% de falso positivo; para cada 100 testes negativos teríamos 98% de verdadeiros negativos e 2% de falso negativo.

Portanto, quanto maior a prevalência da doença, maior o valor preditivo positivo do teste, e quanto menor a prevalência, maior o valor preditivo negativo do teste.

  • Limiar de Reatividade: é a região de corte do teste sorológico, ou seja, o ponto onde são discriminados os indivíduos doentes dos não doentes. Quando aplicamos uma curva de distribuição de frequência de resultados em uma população vamos observar que haverá uma região onde a curva de indivíduos não doentes imbricará com a curva de indivíduos doentes. Esta região é representada por indivíduos falsos positivos e falsos negativos. Os falsos positivos ocorrem por reações inespecíficas de anticorpos a diferentes estímulos antigênicos, principalmente relacionados com epítopos comuns encontrados em inúmeros micro-organismos parasitas da microflora normal ou em indivíduos poliparasitados.

Do exposto, é preciso sempre ter em mente que, em vista das limitações determinadas pelos parâmetros sorológicos, comuns a qualquer teste sorológico, seus resultados têm Valor de Probabilidade, que deverá ser agregado à probabilidade clínica para a correta interpretação no diagnóstico das várias doenças infecciosas.


VALORIZAÇÃO DO RESULTADO DE UM TESTE SOROLÓGICO PARA DOENÇA INFECCIOSA

As técnicas para a detecção de anticorpos e alguns antígenos utilizadas como marcadores de doenças infecciosas empregam a mesma metodologia, variando somente o tipo de antígeno e anticorpo utilizado. Deve-se lembrar, no entanto, as peculiaridades relativas ao emprego destas técnicas. Usadas com finalidade de exclusão ou de rastreamento em bancos de sangue, requerem alguns cuidados na sua interpretação.

Conforme já comentado, o resultado do teste sorológico é de probabilidade e sua positividade ou negatividade é influenciada por fatores como a prevalência da doença, a sensibilidade e a especificidade do teste. Também devemos lembrar, como comentado acima, que ao quantificar os resultados obtidos, observa-se uma imbricação nas curvas de reatividade de indivíduos doentes e não doentes para os diferentes testes sorológicos, devido à presença de anticorpos de grupos contra uma infinidade de determinantes antigênicos presentes geralmente em soros de populações de baixo nível socioeconômico expostas a múltiplas infecções.

Na prática clínica deveriam ser utilizados testes com limiar de reatividade diferente para a finalidade a que se propõe o teste. Assim, nos bancos de sangue, onde a finalidade é não deixar ocorrer falsos resultados negativos para que a doença não seja transmitida por esta via, deveriam ser realizados testes de máxima sensibilidade, ou seja, com limiares de reatividade baixos; e nos laboratórios clínicos onde a finalidade do teste é confirmar os achados clínicos dos pacientes ou para seguimento de terapêutica instituída, deveriam ser empregados testes de máxima especificidade, ou seja, com limiares de reatividade mais altos. Entretanto, isso não ocorre na prática e os testes utilizados em bancos de sangue são os mesmos utilizados nos laboratórios clínicos. Esses testes têm a característica de serem testes de triagem onde se pesquisa a presença de anticorpos específicos no soro dos indivíduos suspeitos, os quais mostram um limiar de reatividade mais baixo e, consequentemente, uma ocorrência maior de falsos resultados positivos.

Deve-se salientar, entretanto, que é bastante conhecido na prática laboratorial que todo teste de alta sensibilidade acarreta um comprometimento na sua especificidade e vice-versa, portanto, não existe um teste sorológico que seja 100% sensível e 100% específico. Logo, os testes utilizados para a detecção de anticorpos/antígenos tem esta característica e, portanto, devem ser interpretados com cautela, uma vez que é bem conhecida a possibilidade de ocorrência de falsos resultados positivos. 

É muito comum na prática clínica o laboratório ser criticado quando tal fato ocorre, algumas vezes levando a demandas judiciais injustas. A interpretação sempre é de um erro de laboratório. Com frequência solicita-se um novo teste para ser realizado em outro laboratório e, quando se trata de um falso resultado positivo, o novo exame realizado mostrará resultado conflitante com o primeiro teste, reforçando a crítica de erro do primeiro laboratório. Na verdade, o que ocorre é que os diferentes fabricantes de kits diagnósticos utilizam diferentes epítopos antigênicos na construção de seus testes, acarretando, algumas vezes, reações cruzadas entre anticorpos inespecíficos presentes no soro do paciente com o epítopo antigênico do kit. Se os dois laboratórios que realizaram o teste usassem o conjunto diagnóstico do mesmo fabricante, com certeza, os dois obteriam o mesmo resultado falso positivo. Obviamente, que tal afirmação considera que o procedimento do teste foi seguido conforme a determinação do fabricante.

Como os testes sorológicos utilizados na rotina são considerados testes de triagem, com alta sensibilidade, conforme já comentado, como é o caso do Enzimaimunoensaio (ELISA), Quimioluminescência, Eletroquimioluminescência, Imunofluorescência (IFI), Imunocromatográfico (testes rápidos), etc., exige algumas vezes um teste confirmatório para esclarecimento, especialmente quando clinicamente e epidemiologicamente não há justificativa para aquele resultado, bem como porque muitos portadores de doenças infecciosas também são assintomáticos. A utilização de um Immunoblot ou de um teste de biologia molecular pode ajudar a esclarecer o resultado do teste de triagem.

Outro fato também bastante importante, é que, como já comentado, as metodologias ao longo do tempo se tornaram bastante sensíveis. Muitas vezes é de grande importância sabermos a fase clínica de uma doença infecciosa, como por exemplo, na toxoplasmose, na rubéola, no citomegalovírus, onde na infecção recente (fase aguda da doença) temos a presença de anticorpos de classe IgM no soro, e não é raro o achado de anticorpos IgM positivos em fase não aguda da doença. A razão disso é a sensibilidade da metodologia usada atualmente, onde o desaparecimento do anticorpo IgM leva, muitas vezes, meses ou até ano. Esses anticorpos IgM presentes no soro são designados como anticorpos IgM residuais, e, que no caso de uma gestante, torna-se um dilema para o médico, uma vez que não se consegue saber se a paciente está na vigência de uma infecção aguda, que pode trazer risco para o feto, ou se a infecção ocorreu muito antes e o feto não estaria, portanto, sob risco. Nestes casos, se a paciente tem presença de IgG, o que certamente terá se teve infecção pregressa, utiliza-se o teste de avidez de IgG. O teste mede a avidez do anticorpo IgG ao antígeno, baseado no grau de maturação do anticorpo. Quanto maior a maturação do anticorpo IgG, maior será sua avidez. Assim, nos primeiros três meses que se seguem a uma infecção aguda, os anticorpos IgG específicos costumam apresentar uma baixa capacidade de ligação com o antígeno, mostrando que aquela presença de anticorpo IgM é de uma infecção recente e deve ser tratada. Após três meses da infecção aguda, 90% dos indivíduos apresentam anticorpos IgG com alta avidez, o que informa que os anticorpos IgM presentes são residuais.

Na sorologia para sífilis, há os testes não treponêmicos, conhecidos como testes de floculação, como o VDRL e o RPR (menos utilizado em nosso meio) que detectam anticorpos anticardiolipínicos, também chamadas reaginas. Esses anticorpos não são específicos para o Treponema pallidum, porém estão presentes na sífilis. E há os testes treponêmicos (confirmatórios), como o FTA-Abs (Imunofluorescência), o ELISA, a Quimioluminescência, etc., que utilizam antígenos do T. pallidum na sua construção. Os não treponêmicos apresentam baixa especificidade e, consequentemente, a ocorrência de reações falso positivas. Portanto, diante de um teste não treponêmico reagente deve-se sempre realizar um teste treponêmico, onde podemos encontrar quatro diferentes interpretações:

1ª. Os dois reagentes – provável sífilis ativa ou latente ou tratada;

2ª. Não treponêmico reagente (geralmente título baixo) e treponêmico não reagente – improvável que seja sífilis;

3ª. Não treponêmico não reagente e treponêmico reagente – pode significar sífilis primária ou sífilis tratada;

4ª. Não treponêmico e treponêmico não reagentes – provavelmente ausência de sífilis ou infecção muito recente e os anticorpos ainda não são detectados pelos métodos utilizados.

A sorologia não é o método ideal para o diagnóstico da fase aguda da doença de Chagas, o mais indicado é o exame direto do sangue periférico com o uso de microscopia. Entretanto, ela pode ser usada na identificação da presença de anticorpos IgM anti-Trypanossoma cruzi, particularmente quando associada a contexto epidemiológico e manifestações clínicas, ou pelo uso da soroconversão que é definida pela presença de uma amostra de soro não reagente para anticorpos anti-T. cruzi associada a uma segunda amostra reagente coletada 2 a 4 semanas após a primeira. Ressalta-se, entretanto, que o diagnóstico da fase crônica da doença de Chagas é essencialmente sorológico; a utilização de metodologias convencionais (Imunofluorescência, ELISA, Hemaglutinação) pode determinar o diagnóstico em quase 100% dos casos. Os testes imunocromatográficos (testes rápidos) vêm se tornando uma opção segura no diagnóstico desta fase da doença; aqueles que utilizam como amostra sangue total são uma opção de escolha para áreas endêmicas e não endêmicas pela facilidade de execução.

O bom conhecimento de todas essas variáveis, bem como da correta interpretação dos vários marcadores das doenças infecciosas, especialmente aquelas onde são utilizados diferentes sistemas de marcadores, como no caso da hepatite B, dará ao clínico maior segurança na utilização desses testes, bem como a possibilidade de uma melhor exploração sorológica de seu paciente, evitando com isso críticas aos laboratórios que praticam rigorosamente seus procedimentos analíticos, mas que não podem controlar fatores pertinentes à metodologia, separando, assim, o que são erros “de” laboratório de erros “do” laboratório.